Maturana e (nossa) humanidade
Jayme Weingartner Neto é desembargador e diretor da Escola da Magistratura
Vai fazer um mês que Maturana faleceu, nonagenário, cada vez mais sábio. A percepção do humano que ele nos proporcionou interessa sobremaneira à Escola da Magistratura, tão firmemente ancorada no eixo transversal da ética e do humanismo. São conhecidas suas influências junto aos educadores, em obra multicitada. Sei da importância dele, também, em nossa rica experiência com a Justiça Restaurativa. Daí que achei oportuno convidar/provocar uma querida amiga, sensível e perspicaz, verdadeira, e que conviveu de forma estreita com ele, nos últimos anos. Vou deixar a palavra com a própria Gizéli Belloli, num texto que mescla ensaio e relato e que, quando passou por meus olhos, me evocou um epitáfio quase alegre de tão doce. Com isso, fica marcada a homenagem da nossa Escola a essa figura exemplar.
Só permitam uma última nota, que retiro de um texto meu mais antigo (Animais não humanos e a vedação de crueldade: o STF no rumo de uma jurisprudência intercultural. Fernanda Medeiros, Jayme Weingartner, Selma Petterle – ebook. Canoas, RS: Ed. Unilasalle, 2016, pp. 51-2).
São cada vez mais visíveis as pontes entre a biologia e a cultura, nomeadamente em função de novas descobertas de diversos ramos do conhecimento: ciência cognitiva, neurociência, genética comportamental, psicologia evolucionista (PINKER, Steven. Tábula rasa: a negação contemporânea da natureza humana. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. pp. 28-32). Tais nexos pavimentam a paradigmática reflexão de Humberto Maturana, biólogo que com Varela descobriu a autopoiese (noção central, por exemplo, no funcionalismo de Luhmann, tão influente na sociologia), desembocando na própria nomenclatura que sintetiza seu pensamento desenvolvido nos últimos anos em pareceria com Ximena D’Ávila: a biologia cultural.
A expressão “intenciona designar e evocar a dinâmica sistêmica recursiva do conviver que dá origem, realiza e conserva nosso viver humano, e só é compreensível a partir de um olhar que assume o “entrelaçamento constitutivo da dinâmica biológica e da dinâmica cultural que faz a unidade do existir humano” (MATURANA ROMESÍN, Humberto; D’ÁVILA YÁÑEZ, Ximena. Habitar humano em seis ensaios de biologia cultural. São Paulo: Palas Athena, 2009, p. 17 - grifei ), no seio da qual narra, numa rica e peculiar linguagem, o surgimento da linhagem Homo sapiens-amans amans. Neste substrato, o humano deve ter começado
faz não menos de três milhões de anos numa linhagem de primatas bípedes, com o ocorrer da família ancestral como um grupo pequeno de convivência no prazer de compartilhar companhia, carícias e alimentos, no qual surgiram, como simples consequência da intimidade desse conviver, o linguajear e o conversar como o próprio conviver no fluir recursivo das coordenações de coordenações de fazeres e emoções e no prazer de fazer juntos os fazeres cotidianos. (MATURANA/D’ÁVILA, 2009, p. 49)
Na busca de clareza, para o autor um “sistema autopoético é um caso particular do ocorrer geral da constituição de sistemas dinâmicos de arquitetura variável que existem como entidades discretas no espaço mais amplo de dinâmicas moleculares” (MATURANA/D’ÁVILA, 2009, p. 105). E uma célula, um organismo,
realiza seu viver no fluxo de suas interações recursivas em seu nicho, que surge como a contínua realização da congruência operacional do organismo na localidade emergente do meio em que conserva seu viver. (...) suas interações recursivas têm como resultado a conservação de sua coerência operacional no curso de suas mudanças arquitetônicas independentes, enquanto o organismo conserva seu viver. (MATURANA/D’ÁVILA, 2009, p. 106.)
Como abstrações desses cursos espontâneos, como observador, Maturana formula leis sistêmicas e meta-sistêmicas, das quais se destaca a lei meta-sistêmica # 25 (Ser vivo e meio):
Um ser vivo e o meio que o contém mudam juntos de maneira congruente como o resultado espontâneo de suas interações recursivas somente se, no fluir de mudanças estruturais, que essas interações desencadeiam em ambos, o ser vivo conserva sua autopoiese e sua relação de adaptação ao meio em seu nicho. Se isso deixa de ocorrer, o ser vivo morre; e, se não morre, seu viver segue um curso orientado pelo bem-estar relacional em sua relação com o meio. (MATURANA/D’ÁVILA, 2009, p. 149)
Penso que foi isso. A Gi conseguiu, no linguajear, compartilhar conosco fazeres e emoções vivenciadas no nicho de bem-estar que Maturana proporcionou. Aproveitem!
Humberto Maturana e eu
Gizéli Belloli é advogada, mestre em Biologia Cultural pela Universidad Mayor do Chile, sócia-fundadora e integrante do corpo diretivo do escritório Cabanellos Advocacia, responsável pelo planejamento estratégico nas áreas de gestão de pessoas, qualidade, comunicação e marca.
Quero começar confessando que não pensei muito a respeito da responsabilidade que surgiu quando eu, inadvertidamente, aceito no calor do momento da sua partida, o convite que amorosamente recebi, para escrever algo sobre a minha vivência com Humberto Maturana. Por óbvio só posso compartilhar a minha experiência particular, mas tenho a consciência de que ele tocou muitas pessoas de distintas formas.
Pois sim, tive a sorte, o privilégio e a honra de ter partilhado com este ser humano genial, ímpar, olhos de menino, generoso como só um anjo em minha imaginação talvez pudesse ser, inúmeros momentos a partir de 2010, quando comecei a atravessar sistematicamente a Cordilheira dos Andes tentando dar conta de manter a visão de mundo que vi revelada quando o conheci.
Tive meu primeiro contato com Maturana em São Paulo, numa certificação oferecida pela Escola Matríztica, co-fundada por ele e Ximena Dávila, sua grande amiga por 22 anos, com quem conviveu, estudou e refletiu abrindo ainda mais seus descobrimentos, além de com ela ter escrito seus últimos livros. Seriam três anos de imersão a partir da sua Biologia do Conhecer e do Amar que, aprofundados a partir do encontro com Ximena, foram-se entrelaçando para compor o que eles nomearam de Biologia Cultural. Pois bem, eu, já num movimento de abandono da advocacia e acreditando que faria um “curso” que me daria subsídios para melhor transitar pela área de gestão de pessoas, comecei a primeira semana sem ter a menor ideia de que sofreria um impacto pessoal nas dimensões que sofri. Um mundo novo se descortinou para mim e eu nunca mais pude ser quem eu era.
Dali em diante, só fiz buscar solidificar o que teve início naqueles três anos de encontros. Passei de seguidora a perseguidora, como em muitos momentos eu dizia para que ríssemos juntos. Fui a quase todos os percursos propostos pela Matríztica e em 2012 trouxe-os a Porto Alegre, através do nosso IEGE, Instituto fundado por meu marido e eu e que se propunha a ser um espaço onde cabia seu pensar.
Na sequência, fiz o Mestrado em Biologia Cultural que ofereceu a Universidad Mayor do Chile tendo um único propósito: continuar mergulhando naquele “pequeno buraco”, mas que se mostrava de uma profundidade abissal. Pude, então, passar a estar todo o tempo possível entre suas explicações científicas sobre a organização dos seres vivos, autopoiese, determinismo e acoplamento estrutural, sistema nervoso, deriva natural... e avançar em minha desconstrução do mundo que, até então, eu acreditava saber como era.
Com o tempo fomos estreitando nossos laços de aluna e professor, conversando muito sobre tudo quando estávamos juntos e trocando e-mails quando estávamos longe. Fiz minha tese com a orientação dele sem nunca deixar de lado o fato irrefutável de que não era nenhum título acadêmico o que eu buscava. Eu queria era ter a compreensão do vivo que ele propunha e para onde, afinal, isso poderia (me) levar. No entanto, entre muitas reflexões e conversas com amigos queridos e que exercem papéis tão fundamentais no nosso cotidiano, cedi à ideia da tese e decidi que iria me debruçar sobre os atos decisórios dos juízes usando como farol os fundamentos da Biologia Cultural, partindo do aforismo de Maturana de que somos seres primordialmente emocionais e usamos a razão para justificar nossas escolhas. Segundo Maturana, são as emoções que guiam nossas ações no mundo e qualquer ação humana surge sempre fundamentada em uma emoção particular.
O tema, por si só intrigante e inspirador, me trouxe também a delícia de poder reconhecer o quanto muitos juízes, talvez intuitivamente, venham honrando o que traz Maturana cientificamente, escapando muitas vezes da “segurança” dos códigos e leis para mergulhar também em si mesmos buscando decidir em coerência com o que emocionalmente possa lhes soar como justo. Essa grata constatação me foi trazida pelos três juízes que me ajudaram a construir a tese, em especial um deles que tenho a sorte de ter por perto, que muito me orgulha sendo o ser humano e o juiz que é, que me inspira e acolhe me abrindo espaços de reflexão onde compartilhamos inquietudes e também entendimentos sobre este mundo que surge a partir de Maturana. Ele sabe quem é.
Pois bem, Maturana, que chamávamos carinhosamente de “Doc”, se foi no dia 6/05, aos 92 anos. Lúcido, seguiu até os últimos dias explicando e demonstrando de forma incansável sua “teoria”. Coloco entre aspas porque ele fazia questão de frisar que o que trazia à mão não era uma teoria, mas abstrações científicas que havia descoberto colocando atenção em como conhecemos o mundo, entendendo a nossa natureza humana a partir do nicho ecológico que nos faz possíveis e da matriz relacional onde se desenvolve de fato a nossa existência.
Ele se foi a seus termos, digno e cercado por seus afetos. Ficamos nós, aqueles que vivenciaram e vivenciam um mundo novo que surge quando aceitamos o convite que ele fez por mais de 60 anos e que continua de pé no legado que deixa na sua Escola Matríztica com Ximena e em todos os seus escritos e registros.
Perdemos um biólogo original, reconhecido e citado no mundo todo, perdemos um raro pensador e um humilde professor que, com uma vontade só comparável a de um gigante, viajou o mundo todo compartilhando pacientemente o que via, como se fosse - aquilo que via - uma espécie de “pó de pirlimpipim” – e eu acredito que é, capaz de revelar o quanto nós, da espécie humana, continuamos, ingenuamente, acreditando no pressuposto de que existe um mundo independente do nosso operar como observadores.
Maturana deixou claro em todo o trajeto que percorreu como cientista e humanista talvez uma única certeza – há muito já abandonara todas -, a certeza de que, se nos propusermos a nos abrir para um novo modo explicativo sobre o que é, afinal, essa condição que nos habita e que chamamos de vida, resultará revolucionada a forma como pensamos entender a nós mesmos e ao mundo. Aí sim poderemos abraçar a sua “tese” de que geramos o mundo (em) que vivemos numa interação espontânea entre organismo/nicho e meio até que cesse a nossa adaptação.
Ele, em qualquer ocasião que pudesse, fazia questão de deixar claro que, apesar de ter sido levado a pensar sobre tantas áreas distintas, seu entendimento do humano nascia desde o biólogo que era, o que, mesmo podendo soar estranho, trouxe à tona tudo que há de mais humano em nós. Entender-nos como seres vivos que somos, a partir do seu olhar, derruba o que em geral pensamos ter como coerências e termina com nossas certezas tais como a de que somos seres que captam as informações do mundo, como se o mundo como percebemos existisse como um “em si”, algo que está aí com independência de nós.
Ao se dedicar a entender o vivo ele chega aos sistemas moleculares e, com seu aluno Francisco Varela, cunha o termo autopoiese quando descobre que, como organismos vivos, somos sistemas circulares e nos produzimos a nós mesmos. Junto com Varela escreve “De Máquinas e Seres Vivos” e “A Árvore do Conhecimento”. A partir dos seus estudos sobre a retina das rãs e salamandras ele fecha o sistema nervoso dando-se conta de que nada do externo poderia nos dizer algo sobre si mesmo e que apenas gatilha modulações de estados no organismo. Vê o que chama de determinismo estrutural e é neste momento que percebe a necessidade de reformular a pergunta pelo que conhecemos para o que é o conhecer. Vê também que nós, como seres humanos, temos um sistema nervoso que não distingue entre ilusão e percepção, ou seja, não sabemos se o que vivemos, no momento em que estamos experienciando, vamos validar ou não no momento seguinte e que isso também é parte da nossa configuração. O que torna inevitável sua conclusão no sentido de que não pode existir uma realidade independente do observador.
O que se descortina com as descobertas de Maturana é que a construção cognitiva do mundo como conhecemos não pode se sustentar. Se aceitamos as suas proposições vamos poder entender porque o mundo se configura com o nosso viver com o outro através da linguagem, dos sentires íntimos, emoções e fazeres.
Se nos deixamos levar pelo que ele viu através da biologia, resta evidente a responsabilidade que, antes dele, não se supunha ter sobre o nosso habitar humano e a construção de mundo, cujo entendimento, como ele gostava de dizer, assusta, mas também liberta. Pois é em paralelo a essas descobertas e em consequência delas que nascem suas inevitáveis e profundas reflexões sociais.
Finalmente, ir compreendendo as abstrações de Maturana me fez mergulhar numa desconstrução que eu, à época com 50 anos (muitos deles vividos com muita terapia...), não intuía que fosse possível acontecer. Por um longo período, passada a fase inicial em que acreditei que seria tarefa fácil lidar com o que vinha vendo com ele e Ximena, fui me sentindo em ruínas e, portanto, foi me surgindo a tarefa árdua de me reconstruir na relação comigo mesma, com meus afetos e com o mundo. Zero de fácil. Foi aí que me dei conta também de que é preciso ter coragem para ouvir Maturana, para aceitar aquele convite que abarca soltar todas as certezas de que pensamos ter. Muitas vezes, nele e em Ximena me socorri para que, como tão delicadamente escreveu Eduardo Galeano na sua pequena história sobre o menino que não conhecia o mar, me ajudassem a olhar.
Hoje, escrevendo aqui, refletindo e relembrando sobre os tantos momentos que vivi com ele, uma risada que não posso evitar me surpreende e eu rio de mim mesma. Acreditei, no início, que se todos ouvissem com alguma atenção o que trazia Maturana, tudo se daria. Mas não, não é assim fácil escutar Maturana, apesar de simples... Eu, particularmente, não posso negar que foi um deserto que atravessei (ainda bem que com muitos oásis...). Perder coerências e certezas não é um acontecimento trivial. De qualquer sorte, depois de passada a árida sensação do deserto, pude ir recuperando a energia e de um outro lugar em mim, pude ir me acomodando de um jeito inegavelmente novo, ao meu viver.
Maturana deixa um entendimento sem precedentes sobre como nós, os humanos, como seres vivos que vivem na linguagem habitamos o mundo e o reconhecimento da força do seu legado pode nos ajudar a mudar o curso da nossa história como espécie, uma necessidade tão urgente. Somos seres reflexivos e, por conta desse fenômeno, podemos escolher. Somos seres que nascemos amorosos e que iniciamos o viver submergindo no emocionar do núcleo que nos acolhe e materna. Aprendemos a cultura que vivemos e seguimos conservando de geração em geração o que queremos conservar. Diante disso, sempre poderemos nos perguntar sobre o que queremos conservar com esse modo de vida competitivo, agressivo, patriarcal, repleto de teorias que sempre partem da negação da legitimidade da existência do outro. Refletir sobre o que queremos conservar entre as escolhas que fazemos nos possibilita transformar este modo de vida que não nos agrada e tem nos feito tanto mal. E essa possibilidade que temos de nos perguntar sobre o que estamos, afinal, conservando com um modo de vida não é trivial, já que num sistema tudo muda em torno daquilo que se conserva. Perceber isso significa assumir a responsabilidade que nos permitirá ver que não podemos seguir com a crença de que há um mundo externo que vemos porque está aí, que vem pronto e do qual nós podemos seguir apenas desfrutando, negando a legitimidade da existência do outro e destruindo o que nos faz possível.
Aceitar que somos seres que nascemos amorosos, que geramos o mundo e que ele nos gera torna impossível não ver que somos absolutamente responsáveis pelas escolhas que fazemos. E, como meu querido mestre e doce amigo gostava de sublinhar: temos em nós, cada um em si, o tema, a pergunta e a resposta.
Para terminar, quero dizer umas poucas palavras sobre o amar do qual ele falava. Quando Maturana trazia o amar como emoção básica do humano, custei a entender o que ele queria dizer, tão acostumada a utilização da palavra adjetivada. Mas com o tempo entendi que esse amar que ele trazia dizia respeito à emoção ordinária que nos permeia como seres humanos e que tem seu significado biológico. Este amar a que ele se referia é a emoção primária que faz possível o social e tem a ver com a aceitação da legitimidade da existência do outro junto a nós. Sem esse amor, sem essa aceitação da legitimidade da existência do outro junto a nós, dizia ele, não haveria socialização e sem socialização não haveria humanidade.
Por fim quero terminar trazendo o que diz um outro Humberto, o Mariotti, psicanalista brasileiro que escreveu em seu livro “As paixões do Ego”:
“... Quando ouvimos alguém expor uma ideia diferente ou pouco usual, nossa preocupação é tentar provar, com a maior rapidez possível (argumentos eruditos ajudam muito) que ela não é tão diferente assim. Fazemos tudo para mostrar que os outros não podem apresentar nada de novo, por dois motivos: primeiro porque é uma atitude desafiadora e, segundo, porque é uma ameaça ao nosso apego à repetição.”
Maturana, além de propor cientificamente uma outra forma de entender o humano numa atitude desafiadora, desde o biólogo que era, demonstra que viver nunca é repetição, mas recursão e traz à mão um novo, surpreendente e transformador modo explicativo do que é o vivo que morre e as consequências sociais que isso implica.
E eu, desde o vínculo de afeto que fiz, porque era impossível não se apaixonar por aquele ser humano se surgisse a oportunidade de vivê-lo mais de perto – momentos que vivi e que agradeço com todas as minhas forças à Ximena Dávila, que foi quem retirou dele a capa de cientista intocável, trazendo-o para a convivência ordinária e fazendo-o ainda mais criativo e feliz –, me arvoro a dizer que ele viveu de forma absolutamente coerente com seus descobrimentos, perseguindo até o final as consequências do que revelava desde a Biologia Cultural. Viveu em harmonia com seu nicho ecológico e com as suas circunstâncias. E o bem-estar que me assalta todos os dias quando olho o mundo que aprendi a enxergar com ele, mesmo mesclado com a tristeza de nunca mais voltar a vê-lo, me consola.
Me consola também o fato de que, talvez mais do que suponho e sem transcendências, ele sabia que morrer era um ato vital e que, cessada a adaptação e a organização que faz possível a autopoiese molecular, todo ser vivo se desintegra... E assim ele se foi, mas ficando em cada um que teve sua visão de mundo revolucionada por seus descobrimentos. Ele fica em mim no respeito por mim mesma, fica em mim na minha relação de amor e respeito à legitimidade do meu filho, fica em mim na relação de amor e companheirismo com meu marido, fica em mim nas relações de afeto e honestidade que tenho com meus amigos e fica em mim no respeito que hoje sinto por este planeta que me faz possível. Maturana fica em mim e ficará até que eu também perca a minha adaptação e organização e cesse a minha autopoiese molecular. E quem me dera ser lembrada, como ele, certa e merecidamente, será!
Termino transcrevendo algo que li e que me tocou profundamente por traduzir a esperança que eu tenho de que o século XXI deixará à mostra Maturana, como os séculos XIV e XV trouxeram Copérnico e Galileu. Eu não sei quem disse, mas, mesmo assim, me atrevi a roubar sem creditar a autoria:
“Humberto Maturana no muere. Se hace territorio...”
Que possamos percorrê-lo e, de fato, transformar o mundo.