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Andrea Hoch Cenne[1]
Resumo: O presente artigo tem por escopo analisar aspectos históricos da violência de gênero e a necessidade de se incorporar a perspectiva de gênero nas fases de investigação, processo e julgamento nas hipóteses de mortes violentas de mulheres. Abordam-se aspectos da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), da Lei nº 13.104/2015, que tipificou o feminicídio, assim como das Diretrizes Nacionais Feminicídio, aprovadas pelo Estado brasileiro, com especial enfoque na fase de investigação.
Palavras-chave: Gênero. Violência contra a mulher. Lei Maria da Penha. Diretrizes Nacionais Feminicídio.
Sumário: 1 Considerações introdutórias; 2 Contextualização histórica da assimetria de gêneros; 3 A Lei Maria da Penha; 4 Violência de gênero contra a mulher, feminicídio e Lei nº 13.104/2015; 5 Diretrizes Nacionais Feminicídio: investigar com a perspectiva de gênero; 6 Considerações Finais; 7 Referências bibliográficas.
Abstract: The purpose of this article is to analyze the historical aspects of gender violence and the need to incorporate a gender perspective in the investigation, prosecution and trial phases in cases of violent deaths of women. It addresses aspects of Law nº 11.340/2006 (The Maria da Penha Law), Law nº 13.104/2015, which typified femicide, as well as the Femicide National Guidelines, approved by the Brazilian State, with a special focus on the investigation phase.
Keywords: Gender. Violence against women. The Maria da Penha Law. National Guidelines Femicide.
1 Considerações introdutórias
A violência contra a mulher por razões de gênero é um fenômeno complexo, com causas múltiplas, entre as quais o sistema patriarcal e a cultura machista, fomentadores da imposição de papéis distintos a homens e mulheres.
O feminicídio (morte violenta de mulheres em razão do gênero) é o ápice dessa violência, representando a expressão máxima da dominação patriarcal, resultado da desigualdade estrutural de poder que molda as relações entre homens e mulheres.
O Brasil, segundo o Mapa da Violência 2015 (Waiselfisz, 2015), é o quinto país com maior taxa de homicídios de mulheres, em um ranking de que inclui 83 nações, registrando, em média, 13 mortes violentas de mulheres por dia.
Em que pese a Lei nº 13.104/2015 tenha incluído no Código Penal o feminicídio como uma das formas qualificadas de homicídio, descortinando o véu da invisibilidade sobre esse tipo de crime, a falta de compreensão sobre a dimensão da violência de gênero e seu contexto acarreta, em muitos casos, a ausência de resposta satisfatória por parte dos sistemas de segurança e de justiça.
Nesse cenário, é imperioso que se incorpore a perspectiva de gênero tanto na fase de investigação criminal quanto na fase do processo judicial, a fim de assegurar efetiva resposta estatal para punir e coibir esse tipo de violência, bem como para evitar que os sistemas de segurança pública e de justiça promovam a violência institucional, revitimizando a mulher e seus familiares.
2 Contextualização histórica da assimetria de gêneros
Historicamente, a mulher sempre foi subjugada em relação ao homem, tendo-lhe sido imposta condição de inferioridade, com participação social/política limitada e, muitas vezes, proibida, sendo seu papel restrito à procriação e aos cuidados domésticos (COSTA, 2008).
Nosso ordenamento jurídico, por mais de um século, reproduziu e reforçou essa estrutura patriarcal, centralizando a autoridade familiar na figura do marido. Houve autorização expressa para que o cônjuge varão matasse a esposa adúltera, sendo tal conduta considerada lícita e legítima (Ordenações do Reino, Livro V, Título XXXVIII, vigente até 1832).[2]
O Código Civil Brasileiro de 1916 estabeleceu que o exercício do pátrio poder e a gestão dos bens da família e dos bens particulares da mulher ficava inteiramente a cargo do marido, considerado chefe e provedor da sociedade conjugal (Código de Civil de 1916, artigos 233 e 380)[3], restando à mulher a mera função de auxiliar do marido na educação dos filhos e na direção do lar (art. 240)[4].
Somente com a Constituição Federal de 1988 exsurge novo modelo, com equiparação formal entre homens e mulheres, sendo positivada a isonomia entre os sexos.[5] No entanto, a assimetria entre os gêneros masculino e feminino ainda persiste, pois intrinsecamente arraigada à cultura machista e fortemente marcada pelas relações patriarcais de poder, nas quais as mulheres continuam subjugadas em relação ao homem.
Nos ensinamentos de J. J. Gomes Canotilho (2002)[6], não é suficiente que os direitos tidos como fundamentais, naturais e inalienáveis do indivíduo estejam positivados junto ao ordenamento jurídico: faz-se necessário que sejam postos na Constituição, como fonte maior de Direito e, deste reconhecimento, resultem consequências jurídicas concretas para sua efetivação.
Desse modo, ao Estado torna-se imperiosa a concretização do comando normativo constitucional de isonomia, acarretando a obrigação de se estabelecerem prestações positivas, com o intuito de transmudar a igualdade abstrata da norma para a igualdade no plano fático. Efetivamente, o tratamento desigual dos casos desiguais, à medida que se desigualam, é exigência do próprio conceito de Justiça (OLIVO, 2017).
3 A Lei Maria da Penha
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (CIDH/OEA), no ano de 2001, responsabilizou o Brasil por omissão, tolerância e negligência no que tange ao enfrentamento à violência contra a mulher, utilizando como base o caso de Maria da Penha Fernandes.[7] Dessa forma, a OEA recomendou ao Brasil a adoção de medidas em prol da criação de políticas públicas que inibissem as agressões no âmbito doméstico em desfavor das mulheres.
Nesse cenário jurídico foi confeccionada a Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), a qual apresenta em seu bojo, mecanismos específicos para coibir e prevenir a violência contra a mulher em razão do gênero. Trata-se de legislação de natureza mista multidisciplinar, que impõe ao Poder Público e aos atores jurídicos novo paradigma, voltado não somente à punição, mas também à prevenção e erradicação da violência de gênero.
A Lei Maria da Penha representa marco fundamental em nosso ordenamento jurídico, sendo divisor no processo histórico de construção e reconhecimento dos direitos das mulheres como direitos humanos no Brasil, porquanto empoderou a mulher e trouxe visibilidade para esse tipo de violência de gênero, obrigando o Estado a implementar políticas públicas voltadas para proteção e acolhimento da mulher vítima de violência, assegurando-lhe rápido e efetivo acesso à Justiça.
Entre as inovações implementadas pela Lei n. 11.340/2006, podemos destacar (a) a enumeração das formas de violência contra a mulher baseada no gênero (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral); (b) a proibição de penas pecuniárias (pagamento de multas ou cestas básicas); (c) a possibilidade de decretação da prisão preventiva quando houver risco à integridade física ou psicológica da mulher; (d) a criação de juizados de violência doméstica, com competência cível e criminal; e (e) a previsão de medidas protetivas de urgência, tais como afastamento do agressor do lar e seu distanciamento da vítima.
Em 2012, a Lei Maria da Penha foi considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) um dos três melhores instrumentos legislativos de proteção à vida da mulher, acompanhada das legislações da Espanha e Chile.[8]
A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará, ratificada pelo Estado brasileiro no ano de 1995, reconhece, de forma expressa, que a violência contra a mulher constitui problema generalizado na sociedade, se traduz em grave violação aos direitos humanos e ofende a dignidade humana, constituindo-se em uma forma da manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre homens e mulheres (SOUZA, 2017).
Nessa conjuntura, o Estado brasileiro, signatário de acordos internacionais que asseguram de forma direta ou indireta os direitos humanos das mulheres, ao promulgar a Lei Maria da Penha, positivou obrigações assumidas com a finalidade de eliminação de todas as formas de discriminação e violência baseadas no gênero.
Forçoso concluir, pois, que a Lei Maria da Penha, como legislação de natureza afirmativa, representa o reconhecimento pelo Estado da inexistência de isonomia substancial entre os gêneros e, em razão disso, cria mecanismos que objetivam minimizar essa assimetria.
Por fim, impende destacar que o combate à violência de gênero contra a mulher constitui obrigação que se insere tanto no plano convencional como no internacional, visto que o Estado brasileiro é signatário da Convenção sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), as quais, além de legitimarem a prática da discriminação positiva em favor do gênero feminino, também vinculam os Estados partes a tomarem medidas concretas para a prevenção e erradicação da violência contra a mulher.
4 Violência de gênero contra a mulher, feminicídio e Lei nº 13.104/2015
O termo “violência de gênero” está intrinsecamente vinculado a toda e qualquer violência (física, moral, psicológica, sexual ou patrimonial) que ocorre no contexto das funções que foram histórica, cultural e socialmente designadas ao homem e à mulher.
O termo gênero, consoante leciona Carmen de Campos (2008) [9], é um conceito sociológico que reconhece que as diferenças entre homens e mulheres são construídas socialmente e se assentam nas relações de poder[10], implicando atribuição de papéis sociais diferenciados ao feminino e ao masculino, com sobrevaloração do sexo masculino, hierarquizando as relações entre os sexos e criando diferenciações culturais.
O conceito de gênero, assim, é utilizado para afirmar algo mais amplo que sexo (realidade biológica do ser humano). Com efeito, as questões ligadas a gênero envolvem o jogo dos papéis que são culturalmente definidos entre agentes imersos em relações de poder, distribuído de modo desigual entre os sexos. A célebre frase de Simone de Beauvoir, quando afirma que “Não se nasce mulher, torna-se mulher” (BEAUVOIR, 2009) [11], exprime com exatidão essa ideia.
De acordo com Baratta (1999, p.45), “É nesta diferenciação das esferas e dos papéis na divisão social do trabalho que age a construção social dos gêneros. A sociedade patriarcal reservou, de forma ampla, o protagonismo da esfera produtiva aos homens e do círculo reprodutivo às mulheres.”
Verifica-se, pois, que ao homem foi reservado o espaço público, o papel de provedor e protetor, enquanto à mulher foi destinado o espaço privado, de relações familiares (função sexual ligada à reprodução, trabalho doméstico), sendo esta dicotomia o eixo de dominação patriarcal.
A violência de gênero, nesse contexto, se manifesta como reflexo do patriarcalismo, caracterizado pela necessidade de controle social e exercício da autoridade do homem sobre mulher, em função dos papéis de gênero que foram culturalmente atribuídos a cada sexo.
Segundo o Modelo de Protocolo Latino-Americano de Investigação das Mortes Violentas de Mulheres por Razões de Gênero, devem ser considerados como feminicídio as mortes violentas de mulheres que denotam uma motivação especial ou um contexto fundamentado em uma cultura de violência e discriminação por razões de gênero (MODELO DE PROTOCOLO, 2014, p. 38).
Pode-se afirmar que o feminicídio (morte violenta de mulheres em razão do gênero, por sua condição de mulher), representa o ápice, extremo e fatal, das diversas e sistemáticas formas de violência a que são submetidas as mulheres insertas em uma sociedade centrada em raízes patriarcais, com desigualdade de poder estruturante entre os gêneros feminino e masculino.
O feminicídio, ressalte-se, não é resultante apenas de violência de gênero inserida em contexto íntimo de afeto (denominado “feminicídio íntimo”), mas está arraigado no desequilíbrio estrutural de poder entre masculino e feminino, na misoginia, no menosprezo pela vida da mulher, podendo também ser constatado quando do tráfico de mulheres, turismo sexual, tráfico de drogas.[12]
A Lei nº 13.104/2015 incorporou o feminicídio no ordenamento jurídico pátrio, retirando esse crime da invisibilidade e reconhecendo que o homicídio de mulheres, na maioria dos casos, está associado a contextos discriminatórios e assimétricos entre os gêneros, sendo cometido por razões da condição do sexo feminino e envolvendo violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher (artigo 121, VI e § 2º, I e II, do Código Penal).
Em que pese a tipificação do feminicídio constitua importante marco, necessário que a lente de gênero se faça presente e seja incorporada pelos agentes do Estado desde o primeiro momento em que se tem conhecimento sobre a morte violenta de uma mulher, a fim de garantir efetiva e satisfatória resposta estatal, com apuração do delito e responsabilização de seu autor.
5 Diretrizes Nacionais Feminicídio: investigar com a perspectiva de gênero
As “Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero as Mortes Violentas de Mulheres” são o resultado da adaptação, para a realidade social, cultural, política e jurídica do Brasil, do “Modelo de Protocolo Latino-Americano de Investigação de Mortes Violentas de Mulheres por Razões de Gênero”, elaborado pelo Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) em colaboração com a ONU Mulheres.
O objetivo geral das Diretrizes é
[...] proporcionar orientações e linhas de atuação para melhorar a prática do(a)s operadore(a)s de justiça, especialistas forenses ou qualquer pessoal especializado – que intervenham na cena do crime, no laboratório forense, no interrogatório de testemunhas e supostos responsáveis, na análise do caso, na formulação da acusação, ou ante os tribunais de justiça (DIRETRIZES, p.11).
As Diretrizes não visam substituir outros procedimentos ou protocolos já existentes para a investigação de homicídios de mulheres, mas tem por escopo agregar elementos que possam aprimorar a resposta do sistema de justiça criminal, modificando práticas enraizadas e alterando rotinas que perpetuam os estereótipos e preconceitos de gênero, em conformidade com as obrigações nacionais e internacionais assumidas pelo governo brasileiro.[13]
Foi reconhecido pela ONU que a inação do Estado na consecução de um funcionamento adequado do sistema de justiça criminal em relação a atos de violência contra as mulheres tem efeitos particularmente corrosivos, pois a impunidade encoraja a perpetuação, naturalização e aceitação da violência, além de reforçar a ideia de subordinação feminina, constituindo violação de direitos humanos.[14]
Com efeito, a inclusão da perspectiva de gênero desde a fase investigatória, bem como a compreensão de que as desigualdades de poder estruturantes das relações de gênero aumentam a vulnerabilidade da mulher, permitirá o aprimoramento das respostas institucionais e a prevenção de mortes violentas de mulheres.
Cumpre ressaltar que, usualmente, o feminicídio é um crime evitável, na medida em que precedido por um continuum de violências que se perpetuam até o desfecho fatal, sendo dever do Estado a formulação e implantação de medidas de prevenção, proteção e responsabilização.
Em se tratando de violência doméstica, a tendência é que ocorra agravamento das agressões (denominado por WALKER como “ciclo da violência”)[15], as quais têm início com ofensas, humilhações, controle das roupas, do patrimônio e da liberdade da mulher, com progressão para ameaça, violência física e, por fim, o feminicídio, o qual poderia ser evitado em muitos casos, se não houvesse conivência institucional e social diante das discriminações e violências praticadas contra as mulheres em razão do gênero.
As Diretrizes[16], no que pertine às causas da violência de gênero, adotam o “modelo ecológico feminista”, de Lori Heise (1999, grifos nossos), o qual opera em quatro níveis de causalidade, considerando que tal violência somente poderá ser explicada a partir de um conjunto de fatores diversos, quais sejam, social (atitudes, crenças e representações culturais sobre o que é ser homem e o que é ser mulher; noção de masculinidade associada à dominação; códigos de condutas e vestimentas; aceitação social de castigo físico contra mulheres e meninas; menosprezo em relação às qualificações das mulheres); comunitário (ambientes em que as relações de poder se desenvolvem; dicotomia entre público/privado, na qual o ciclo de violência isola a mulher de suas redes sociais e familiares); relacional (organização familiar e entornos imediatos de convivência; ideias de organização hierárquica da família em torno do homem; dominação econômica masculina; uso da violência como forma de resolução de conflitos familiares); e individual (doenças mentais, consumo elevado de álcool ou outras substâncias viciantes).
Assim, o modelo ecológico adotado pelas Diretrizes[17] abrange a dimensão pessoal de quem pratica a violência e daquele que sofre, levando em consideração fatores multicausais, tanto biológicos quanto sociais, permitindo a interseccionalidade, ou seja, entrecruzamento de gênero com as características de raça, cor, etnia, idade, classe social (WIECKO, 2016).[18]
Para uma eficaz investigação sob a ótica de gênero, inarredável que se faça abordagem integral e completa dos fatos, devendo ser considerado o contexto em que o delito foi praticado e todas as suas circunstâncias, assim como os meios e modos empregados para a consecução do ilícito. Ainda, relevante que se apurem as características de quem praticou o crime (sujeito ativo) e de quem sofreu a violência (sujeito passivo).
As Diretrizes[19] recomendam que, em se tratando de mortes violentas de mulheres (ou sua tentativa), a investigação sempre tenha como ponto de partida inicial a perspectiva de gênero para apuração dos fatos, a qual poderá ser confirmada ou descartada ao final do procedimento. Tal ótica deve permear todas as etapas da atuação policial e abranger o trabalho de delegados, agentes, escrivães, peritos, médicos-legistas, enfim, de toda a equipe de investigação.
Com o objetivo de fomentar a implementação das Diretrizes[20] para melhorar a resposta estatal, a Carta da XII Jornada Maria da Penha, em seu item “5”, preconiza que a investigação de casos de mortes violentas de mulheres, desde o início, seja tratada como possível crime de feminicídio, especialmente na elaboração dos laudos periciais.[21]
Com efeito, nem todo o homicídio de mulheres caracterizará o crime de feminicídio, sendo dever do Estado empregar a lente de gênero para avaliar cada caso de forma individualizada, de modo que seja possível saber se a motivação de gênero contribuiu para o ilícito, com escopo de viabilizar o perfeito enquadramento típico.
Existem algumas circunstâncias que devem ser observadas no curso investigação e que podem servir para evidenciar as razões de gênero como móvel para o assassinato, tais como as partes do corpo da mulher que foram atingidas e são associadas à beleza, feminilidade e ao desejo sexual sobre o corpo feminino (rosto, seios, órgãos genitais e ventre); a multiplicidade de tais marcas e como essas contribuem para revelar o desprezo, a raiva ou o desejo de punir a vítima por seu comportamento; a presença de violência simbólica (destruição de objetos pessoais da mulher, maus-tratos a animais domésticos); a constatação de ferimentos antigos no corpo da vítima, já cicatrizados, o que pode evidenciar a habitualidade da conduta agressiva (ciclo da violência); a existência de registros de ocorrência anteriores noticiando violência ou de processos judiciais em que haja disputa de guarda, patrimônio, alimentos, reconhecimento de paternidade, bem como eventual procedimento junto ao juizado de violência doméstica; atendimento pretérito em hospitais e unidades básicas de saúde, uma vez que nem sempre as mulheres levam a notícia da violência aos órgãos policiais; eventual atendimento da vítima pela rede municipal de assistência e proteção (CREAS, CRAS, Conselho Tutelar, centros de referência ou casa abrigo).
Todas as etapas da investigação devem ser isentas de preconceitos de gênero, evitando a reprodução do sexismo e discriminações, com culpabilização da vítima pela violência sofrida. Dessa forma, quando da oitiva de vítimas sobreviventes, vítimas indiretas ou testemunhas, não deverão ser formuladas perguntas invasivas sobre a vida íntima da mulher, tampouco sobre seu comportamento sexual, porquanto se tratam de detalhes desnecessários para a investigação. Deve-se ter extremo cuidado para não reforçar estereótipos de gênero, reproduzir valores, julgamentos morais e práticas sexistas, com intuito de evitar a submissão da mulher e seus familiares à violência institucional.
Pertinente acentuar que nosso ordenamento jurídico não mais contempla as teses de “legítima defesa da honra” ou de “crime passional”, as quais fomentam a inversão de responsabilidade, deslocam a culpa pela violência sofrida para a vítima, incitam a impunidade e geram sentimento de tolerância social. As razões do feminicídio não são “ciúmes” ou “descontrole”, mas sim o sentimento de posse, a objetificação da mulher e a desigualdade estrutural de poder entre os gêneros.
A autoridade policial também deverá utilizar a perspectiva de gênero na investigação de supostos suicídios de mulheres, além de mortes que aparentam ser acidentais (afogamentos, quedas) e de mortes com causas iniciais indeterminadas, uma vez que poderá haver razões de gênero em sua origem.
Por fim, as Diretrizes[22] elencam as dez regras mínimas para investigação eficaz de mortes violentas de mulheres, quais sejam:
Regra 1 - Obrigatoriedade e características da investigação
Significa que a investigação deve ser iniciada ex officio, de modo profissional e de imediato, tão logo se receba a notitia criminis de tentativa ou morte violenta de uma mulher, a fim de possibilitar a pronta coleta e preservação de provas.
Toda a investigação deve ser realizada de forma séria, imparcial, transparente, exaustiva (com exame de todas as linhas de investigação possíveis) e eficaz, utilizando-se de todos os recursos tecnológicos disponíveis.
A investigação constitui obrigação de meio, não de resultado, e deve ser orientada para a apuração da verdade, promovendo a identificação do autor e sua responsabilização.
Regra 2 – Respeito e dignidade das vítimas
O Estado deve propiciar às vítimas diretas e indiretas atendimento humanizado e respeitoso, bem como garantir sua segurança e bem-estar físico e psicológico. Deve ser assegurado, no curso da investigação, do processo e do julgamento, o respeito à dignidade das vítimas sobreviventes, bem como de seus familiares (vítimas indiretas), com o escopo de evitar a revitimização institucional, que culpabiliza a mulher pela violência sofrida e reforça estereótipos de gênero, linguagem sexista e discriminatória.
Nesse tópico, deve ser ressaltado o direito à memória da vítima, de modo que a investigação seja livre de preconceitos, preservando-se a intimidade e privacidade da mulher. Com o intuito de resguardar tal direito fundamental, não se permitirá a utilização de documentos, vídeos ou fotografias que denigram a imagem da vítima e invertam a responsabilização pela violência sofrida em razão de julgamentos morais por seu comportamento.
Viola os direitos humanos das vítimas de mortes violentas por razões de gênero, o (a) defensor(a)/advogado(a) que, no exercício da defesa, refere-se à legítima defesa da honra ou de forma discriminatória e eivada de juízo de valor como justificação do crime. Esta forma é especialmente grave no caso de mortes consumadas, no que se refere ao direito à memória das vítimas.” (DIRETRIZES, p. 67).
A plenitude de defesa, portanto, encontra limites éticos no direito à dignidade e memória da vítima, não sendo viável a arguição de teses sexistas que possam justificar ou minimizar a conduta do agressor, com inversão da responsabilidade pelo ocorrido.
Regra 3 – Eliminação dos preconceitos e estereótipos de gênero no desenvolvimento da investigação
Significa que todos os integrantes dos sistemas de segurança e de justiça devem ser objetivos e imparciais, não permitindo que preconceitos e estereótipos de gênero tenham influência sobre a investigação, processo ou julgamento de feminicídios.
Faz-se necessária, assim, a contínua qualificação dos agentes do Estado, de modo que a visão de gênero passe a ser internalizada e permeie todas as instituições.
Nesse sentido, o item “2” da Carta da XII Jornada da Lei Maria da Penha[23], incita os Tribunais de Justiça, os Ministérios Públicos, as Defensorias Públicas, as Polícias Civis e as Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal a capacitarem de forma integrada seus membros sob a perspectiva de gênero e suas interseccionalidades (raça, cor, regionalidade, sexualidades, religião, deficiência, entre outras), com observância do protocolo previsto nas Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar os Crimes de Feminicídio.
Regra 4 – Participação ativa das vítimas no processo de investigação e sua proteção
O Estado deve propiciar a efetiva participação das vítimas sobreviventes e das vítimas indiretas na investigação e no processo judicial, assegurando-lhes mecanismos para sua proteção.
A Lei Maria da Penha prevê que a autoridade policial, quando do atendimento à mulher vítima de violência, garanta sua proteção e informe sobre os direitos previstos na legislação, dentre os quais o de solicitar medidas protetivas de urgência para si e seus familiares.[24]
Reforça-se que as normas que tutelam direitos humanos das vítimas previstas na Lei Maria da Penha não se restringem à aplicação dentro dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher, devendo ser empregadas da forma mais ampla possível, em especial em situações envolvendo feminicídio.
Nesse sentido, o Enunciado 31 do FONAVID (Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica) dispõe que “as medidas protetivas de urgência, previstas na Lei Maria da Penha, são aplicáveis nas Varas do Tribunal do Júri em casos de feminicídio.”
Revela-se essencial, portanto, a interlocução entre todos operadores dos sistemas de segurança e justiça, com intuito de efetivar ampla proteção para a vítima sobrevivente ou para as vítimas indiretas.
Regra 5 – Investigação de feminicídios de mulheres especialmente vulneráveis
A investigação deve atentar para as características do contexto cultural e condição social das vítimas que se encontram em situação de vulnerabilidade, tais como razões de idade, incapacidade, mulheres pertencentes a comunidades indígenas, mulheres migrantes, et al.
No Brasil, aplica-se o conceito de vulnerabilidade expresso nas Regras de Brasília (XIV Conferência Judicial Ibero-americana, março de 2008)[25], considerando-se em condição de vulnerabilidade as pessoas que, por razão da sua idade, gênero, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico.
Regra 6 - Direito das vítimas ao acesso à justiça e ao devido processo
O Estado deverá propiciar o acesso à informação, de forma ampla e transparente, fornecer orientação e atendimento humanizado para vítimas sobreviventes e indiretas.
Nesse tópico, podemos citar o direito à justiça, havendo obrigação estatal de que a investigação seja instaurada de imediato, de modo imparcial, a fim de apurar os fatos e identificar os responsáveis, aplicando-lhes a devida sanção.
Faz-se necessário que a resposta do sistema de justiça ao fato criminoso ocorra dentro de tempo razoável, tendo por norte que a morosidade no desfecho acarreta sensação de impunidade e permissividade, acabando por reforçar os estereótipos de gênero. Afinal, consoante expressava Rui Barbosa, justiça tardia nada mais é do que injustiça institucionalizada.[26]
De igual forma, o direito à verdade, de conhecer as circunstâncias do crime, os motivos e os responsáveis pelo ilícito.
O dever do Estado de investigar feminicídios e tentativas de feminicídios acarreta, também, o direito das vítimas de ter acesso à informação sobre o desenvolvimento da investigação e constitui uma das etapas necessárias para o “reconhecimento da verdade por parte dos familiares das vítimas e da sociedade, assim como a punição dos responsáveis e o estabelecimento de medidas que previnam a repetição das violações aos direitos humanos” (MODELO DE PROTOCOLO, 2014, § 68, p. 30).
A Lei Maria da Penha assegura à mulher vítima de violência a presença de advogado em todos os atos processuais, sejam de natureza cível ou criminal e ainda na fase policial, a fim de lhe garantir maior proteção.[27]
Em se tratando do crime de feminicídio, tal exigência é de suma importância, em especial quando do julgamento perante o Tribunal do Júri, de modo que sejam respeitadas e preservadas a memória da vítima, sua intimidade e privacidade.
O Enunciado nº 32, do FONAVID, estabelece a obrigação de nomeação de defensor público ou advogado dativo para atuar na defesa da vítima e seus familiares nos processos de competência do Tribunal do Júri (feminicídios tentados ou consumados).[28]
Por fim, o direito à reparação justa e eficaz em razão da violência sofrida, abrangendo danos materiais, morais, estéticos. Deve ser assegurado à vítima, quando possível, a restituição ao status quo ante, bem como atendimento médico, psicológico, jurídico e social.
Cumpre salientar que a Lei 11.719/2008, ao alterar alguns dispositivos do Código de Processo Penal, possibilitou que o juiz criminal, na própria sentença condenatória, fixe indenização mínima para reparação dos danos decorrentes da prática da infração penal.[29]
Regra 7 – Dever de criar registros e elaborar estatísticas e indicadores de violência contra as mulheres na administração da justiça, para serem aplicados em políticas públicas
Constitui obrigação do Estado a colheita de dados precisos e completos, medida essencial para elaborar e aprimorar políticas públicas e monitorar o progresso na prevenção e no enfrentamento de feminicídios, bem como para aperfeiçoar a resposta estatal a esse tipo de crime.
O item “3” da Carta da XII Jornada da Lei Maria da Penha, incita os Tribunais de Justiça, os Ministérios Públicos, as Defensorias Públicas, as Polícias Civis e as Polícias Militares dos Estados e do Distrito Federal a adotarem de interoperabilidade seus sistemas informáticos para a específica classificação dos casos de feminicídio.[30]
Regra 8 – Exigência de ação coordenada entre todos os participantes no processo de investigação
Os Estados devem adotar disposições e outras medidas necessárias para regular e propiciar a participação no processo de investigação, de modo conjunto e coordenado, de todos os agentes públicos competentes e dos demais atores legitimados, de eficácia provada (DIRETRIZES, p. 57).
A ação coordenada entre polícias civil e militar, peritos, médicos-legistas e também o Ministério Público, é essencial para que a investigação se desenvolva de modo célere, completo e eficaz.
A Carta da XII Jornada Maria da Penha, em seu item “4”, recomenda que seja realizada a padronização dos trabalhos de investigação de atos de violência contra as mulheres, inclusive nos plantões policiais, e que se adote, desde o início, a perspectiva de gênero, em conformidade com as Diretrizes Nacionais Feminicídio.[31]
Regra 9 – Estabelecimento de pautas e recomendações para o tratamento da informação pelos meios de comunicação das investigações de feminicídio
Quando um crime de feminicídio é noticiado na imprensa, via de regra, há o reforço aos estereótipos de gênero e culpabilização da mulher, com a busca de justificativas para o ilícito no comportamento da vítima, fomentando a aceitação social em relação a esse tipo de conduta. Comumente são ventiladas informações e expostas imagens desnecessárias sobre detalhes mórbidos ou aspectos íntimos da vida da mulher, com abordagem descontextualizada e parcial, violando o direito à memória de vítimas e seus familiares.[32]
Desse modo, os agentes dos sistemas de segurança e de justiça devem velar para que as informações coletadas, em especial aquelas que versem sobre aspectos íntimos da vida da vítima, não sejam divulgadas ao público.
Necessário que exista articulação com a imprensa, a qual poderá contribuir para dar visibilidade aos dois principais contextos em que ocorrem os feminicídios (violência doméstica e/ou menosprezo à condição do sexo feminino), auxiliando na desconstrução dos estereótipos de gênero e informando os canais estatais em que se poderá realizar denúncias e buscar proteção.
Regra 10 – Exigência de cooperação internacional eficaz
Os Estados deverão estabelecer as bases e adotar as medidas necessárias para que outras entidades públicas ou privadas cooperem eficazmente entre si, por vias intergovernamentais ou transnacionais, com vistas à conquista de maior eficácia da investigação dos feminicídios, sua prevenção e erradicação (DIRETRIZES, p. 57).
6 Considerações Finais
A violência de gênero, estruturada nas relações patriarcais de poder, remonta aos primórdios da civilização.[33] Em que pese a evolução no ordenamento jurídico, com a positivação da isonomia entre os sexos, constata-se que a assimetria entre os gêneros está arraigada a questões culturais seculares, cuja transformação não ocorre com a mesma velocidade da legislação.
A Lei Maria da Penha, indubitavelmente, representou efetivo avanço no ordenamento jurídico nacional, na medida em que empoderou a mulher e trouxe visibilidade para esse tipo de violência, obrigando o Estado a implementar políticas públicas voltadas para proteção e acolhimento da mulher vítima de violência, assegurando-lhe rápido e efetivo acesso à Justiça.
De igual forma, a inclusão do feminicídio como qualificadora do tipo penal de homicídio implementada pela Lei nº 13.104/2015, segue as recomendações de organizações internacionais, como a Comissão sobre a Situação da Mulher (CSW) e o Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), ambos da ONU, e revela-se essencial para que se possa reconhecer e mensurar os homicídios de mulheres motivados por questões de gênero.
No entanto, as respostas apresentadas pelo Estado diante do fenômeno crescente da violência e morte de mulheres em função da assimetria de gêneros, ainda não são satisfatórias.
As “Diretrizes Nacionais para Investigar, Processar e Julgar com Perspectiva de Gênero os Crimes de Feminicídio” buscam trazer novos elementos para aprimorar a reprimenda estatal a este tipo de ilícito, de modo que a lente de gênero seja incorporada por todos os operadores que atuam nos sistemas de segurança pública e de justiça, auxiliando na implementação de um novo olhar nos casos de mortes violentas de mulheres, despido de preconceitos e estereótipos de gênero, modificando práticas e rotinas enraizadas, a fim de assegurar resposta estatal eficiente para punir e prevenir esse tipo de crime.
Portanto, a internalização da ótica de gênero dentro das instituições é medida impositiva, a fim de que se aperfeiçoem os métodos para investigação, processo e julgamento de feminicídios, evitando a reprodução de estereótipos de gênero e assegurando ampla resposta à vítima, a seus familiares e à sociedade, em consonância com as obrigações nacionais e internacionais assumidas pelo governo brasileiro.
Referências bibliográficas
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[1] Juíza de Direito do Juizado de Violência Doméstica e Familiar e Coordenadora do CEJUSC da Comarca de Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul; Integrante da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.
[2] “Do que matou sua mulher, pola achar em adultério. – Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela como o adultero”. “E não somente poderá o marido matar sua mulher e o adultero, que achar com ela em adultério, mas ainda os pode licitamente matar, sendo certo que lhe cometerão adultério; e entendendo assim provar, e provando depois o adultério per prova licita e bastante conforme a Direito, será livre sem pena alguma”. “E declaramos que no caso em que o marido pode matar sua mulher, ou o adultero, como acima dissemos, poderá levar consigo as pessoas que quiser, para o ajudarem”.
[3] “Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal.
Compete-lhe:
I. A representação legal da família.
II. A administração dos bens comuns e dos particulares da mulher, que ao marido competir administrar em virtude do regime matrimonial adaptado, ou do pacto antenupcial (arts. 178, § 9º, nº I, c, 274, 289, nº I, e 311).
III. direito de fixar e mudar o domicílio da família (arts. 46 e 233, nº IV).
IV. O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do tecto conjugal (arts. 231, nº II, 242, nº VII, 243 a 245, nº II, e 247, nº III).
V. Prover à manutenção da família, guardada a disposição do art. 277.
“Art. 380. Durante o casamento, exerce o pátrio poder o marido, como chefe da família (art. 233), e, na falta ou impedimento seu, a mulher.”
[4]“Art. 240. A mulher assume, pelo casamento, com os apelidos do marido, a condição de sua companheira, consorte e auxiliar nos encargos da família (art. 324).”
[5] Interpretando o mencionado mandamento constitucional, Moraes (2016) afirma que: “A correta interpretação desse dispositivo torna inaceitável a utilização do discrímen sexo, sempre que o mesmo seja eleito como propósito de desnivelar materialmente o homem da mulher; aceitando-o, porém, quando a finalidade pretendida for atenuar os desníveis”. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 32. ed. São Paulo: Atlas, 2016.
[6] CANOTILHO, J.J Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002.
[7]A história de Maria da Penha Fernandes está disponível em <http://www.compromissoeatitude.org.br/wp-content/uploads/2012/08/OEA_CIDH_relatorio54_2001_casoMariadaPenha.pdf>. Acesso em: 31/08/ ago. 20017.
[8]Relatório Progresso das Mulheres no Mundo (2011/2012), elaborado pela UN Women, entidade da ONU. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/noticia/publicacoes/desenvolvimento/>. Acesso em 31 ago. 20017.
[9] CAMPOS, Carmen Hein. Lei Maria da Penha: mínima intervenção punitiva, máxima intervenção social. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. 73 – 2008
[10] Utilizamos o significado de “poder” na concepção de Michel Foucault, no sentido de que “o poder não é um objeto natural, uma coisa; é uma prática social e, como tal, constituída historicamente” (FOUCAULT, 2016).
[11] BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
[12] São elencadas como modalidades de assassinatos de mulheres reconhecidas como feminicídios: íntimo; não íntimo; infantil; familiar; por conexão; sexual sistêmico (Feminicídio, Invisibilidade Mata. Instituto Patrícia Galvão. Disponível em: http://agenciapatriciagalvao.org.br/wp-content/uploads/2017/03/LivroFeminicidio_InvisibilidadeMata.pdf>. Acesso em 14 ago. 2018.
[13]Diretrizes, p. 73.
[14]ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Relatório Estudio a fondo sobre todas las formas de violencia contra la mujer, A/61/122, Add. 1, 6 de julho de 2006. Disponível em http://www.cepal.org/mujer/noticias/paginas/1/27401/InformeSecreGeneral.pdf
[15]Walker, L. E. (2009). The Battered Woman Syndrome. Springer Publishing Company.
[16]op. cit.
[17]op. cit.
[18]Ela Wiecko Volkmer de Castilho, As diretrizes nacionais para investigação do feminicídio na perspectiva de gênero. Revista do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais. Pontifícia Universidade Católica do rio Grande do Sul – PUCRS (2016).
[19]op.cit.
[20]op. cit.
[21]“Item 5. FOMENTAR a investigação dos casos de mortes violentas de mulheres, desde o início, como possíveis crimes de feminicídio, especialmente na elaboração dos laudos periciais”
Carta da XII Jornada da Lei Maria da Penha (Brasília, 10 de agosto de 2018), disponível em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/1b6b34c5a1f95ec0d4e76813237167e7.pdf
[22]op. cit.
[23]Carta da XII Jornada da Lei Maria da Penha (Brasília, 10 de agosto de 2018), disponível em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/1b6b34c5a1f95ec0d4e76813237167e7.pdf
[24]“Art. 11. No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial deverá, entre outras providências:
I - garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato ao Ministério Público e ao Poder Judiciário;
II - encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao Instituto Médico Legal;
III - fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida;
IV - se necessário, acompanhar a ofendida para assegurar a retirada de seus pertences do local da ocorrência ou do domicílio familiar;
V - informar à ofendida os direitos a ela conferidos nesta Lei e os serviços disponíveis.”
[26]OLIVEIRA, Rui Barbosa de. Oração aos moços. São Paulo: Editora Martin Claret, 2006.
[27] “Art. 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei.”
[28]“ENUNCIADO 32 – As vítimas de crime de feminicídio e seus familiares devem contar com a assistência jurídica gratuita, devendo o(a) Juiz(a) designar defensor(a) público(a) ou advogado(a) dativo(a) para atuar em defesa nos processos de competência do Tribunal do Júri, exceto se estiverem assistidos por advogado e ou defensor público.”
[29]“CPP, Art. 63. Transitada em julgado a sentença condenatória, poderão promover-lhe a execução, no juízo cível, para o efeito da reparação do dano, o ofendido, seu representante legal ou seus herdeiros.
Parágrafo único. Transitada em julgado a sentença condenatória, a execução poderá ser efetuada pelo valor fixado nos termos do inciso IV do caput do art. 387 deste Código sem prejuízo da liquidação para a apuração do dano efetivamente sofrido.” (Incluído pela Lei nº 11.719, de 2008).
“CPP, Art. 387. O juiz, ao proferir sentença condenatória:
(…) IV - fixará valor mínimo para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido”
[30]Carta da XII Jornada da Lei Maria da Penha (Brasília, 10 de agosto de 2018), disponível em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/1b6b34c5a1f95ec0d4e76813237167e7.pdf
[31]Carta da XII Jornada da Lei Maria da Penha (Brasília, 10 de agosto de 2018), disponível em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2018/08/1b6b34c5a1f95ec0d4e76813237167e7.pdf
[32]Dossiê Feminicídio – Qual é o papel da imprensa?, Instituto Patrícia Galvão, disponível em <http://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/feminicidio/capitulos/qual-o-papel-da-imprensa>
[33] BARATTA, Alessandro. O paradigma do gênero: da questão criminal à questão humana. In: CAMPOS, Carmen Hein de (Org.). Criminologia e feminismo. Porto Alegre: Sulina, 1999
21 A 28 DE AGOSTO – SEMANA NACIONAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER COM DEFICIÊNCIA
A Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) é o marco legal brasileiro de prevenção e combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. Lastreada em normativas internacionais de proteção dos direitos humanos das mulheres e na Constituição Federal de 1988, a Lei 11.340/06 garante a todas as mulheres, sem distinção, o exercício dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhes asseguradas as oportunidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Garantia para exercício efetivo dos direitos à vida, à segurança, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, à moradia, ao acesso à justiça, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária ( arts. 1º, 2º, 3º, da Lei 11.340/06).
E as mulheres com deficiência NÃO podem ficar invisibilizadas!
Todo o sistema de atenção e proteção deve atuar conforme as suas condições peculiares, nos termos do que dispõe o art. 4º da Lei Maria da Penha, e, ainda o Estatuto da Pessoa com Deficiência ( Lei 13.146/15), que visa assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais por pessoa com deficiência, visando a sua inclusão social e cidadania.
Portanto, toda a atuação deve levar em consideração as dificuldades peculiares que essas mulheres têm, especialmente quanto ao acesso às informações e aos serviços. A capacitação dos profissionais que compõem a Rede de Atendimento e de Assistência dessas mulheres que, além de sofrerem violência doméstica são portadoras de algum tipo de deficiência, faz-se imprescindível para garantir que seus direitos sejam legitimados e que o ciclo de violência não seja perpetrado ao acessar essa rede.
Além dessa capacitação também é imprescindível efetivar a acessibilidade aos locais em que são prestados os serviços e atendimentos, como no Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Delegacias de Polícia, Unidades Básicas de Saúde(UBSs), Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), Plantões de Emergência em Saúde Mental (PESMs), Centros de Referência e Assistência Social (CRAS) ou Centros de Referência e Assistência Social Especializada (CREAS) e Hospitais.
Importante, ainda, pensar na efetivação de direitos que possibilitem a concessão de benefícios, como por exemplo, garantia de passe livre no transporte público municipal e a concessão de órteses/próteses/cirurgias por conta da deficiência já existente e agravada muitas vezes em decorrência da violência doméstica ou estabelecida a partir dela.
São muitos os desafios! Mas vamos lá, mãos à obra!
ESTATÍSTICAS
“No mundo, estima-se que uma em cada cinco mulheres vivem com deficiência e que a taxa de prevalência de deficiência das mulheres (19,2%) seja superior à dos homens (12%). Essas mulheres são duas a três vezes mais propensas a casamentos infantis e forçados, a engravidar precocemente, entre outras violações de direitos humanos.
No Brasil, as mulheres com deficiência somam mais de 26 milhões de pessoas. Em sua expressiva maioria, elas deparam-se com a invisibilidade e o silenciamento de suas vozes como barreiras iniciais, inviabilizando o exercício de seus direitos humanos e de cidadania. São alvo de desigualdades de gênero e de discriminações no acesso à saúde, à educação e aos direitos econômicos, políticos e culturais. Nas empresas, elas representam 0.8% dos 2% de trabalhadoras e trabalhadores com deficiência nas 500 maiores empresas no país” (Nadine Gasman, Representante da Onu Mulheres Brasil, 13.12.2016, disponível em http://www.onumulheres.org.br/noticias/10anos-convencao-deficiencia/
Em 2018, o Ligue 180 (Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência) registrou 46.510 casos de violência contra a mulher. Destes, 8,5% são de mulheres com deficiência. Segundo o Ministério da Saúde, no mesmo ano, 117.669 mulheres vítimas de violência doméstica foram atendidas em todo o país. Deste total, 6% aparecem no registro com alguma deficiência.
O Atlas da Violência 2018 mostrou que, de 22.918 casos de estupro, 10,3% são de pessoas com deficiência. Entre os casos de estupro coletivo, 12,2% das vítimas tinham algum tipo de deficiência.
A Lei nº 13.836/2019 acrescenta o inciso IV ao art. 12 da Lei 11.340/06 – Lei Maria da Penha, para tornar obrigatória a informação sobre a condição de pessoa com deficiência da mulher vítima de agressão doméstica e familiar, e se da violência sofrida resultou deficiência ou agravamento de deficiência preexistente.
O Formulário Nacional de Avaliação de Risco, instituído através da Resolução Conjunta nº 5 do CNJ e CNMP, e que é respondido pela mulher vítima de violência doméstica, preferencialmente, no momento do registro de ocorrência policial e pedido de medidas protetivas, também traz questionamento acerca dessa condição, por considerar importante marcador para a identificação dos riscos de novas violências bem como seu gerenciamento, atendendo às especificidades e necessidades dessa mulher.
Tais informações serão úteis no sentido de consolidar estatísticas locais para o mapeamento das mulheres com deficiência vítimas de violência e para embasarem a formulação de políticas públicas que alcancem essa parcela da população.
ACESSIBILIDADE
1. Se você quer saber mais sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, acesse o portal do Conselho Estadual dos Direitos da Pessoa com Deficiência do RS:
http://www.coepede.rs.gov.br/inicial
2. Relatório International Network of Women with Disabilities (INWWD)
Através da leitura do Relatório International Network of Women with Disabilities (INWWD), pode-se compreender aspectos importantes da interseccionalidade entre violência, gênero e deficiência, especialmente quando se está diante da violência doméstica que é praticada contra mulheres com deficiência. Inclusive fazendo os seguintes questionamentos a fim de que possamos aumentar nossa empatia no enfrentamento de tal condição de violência
“ A que nos referimos quando falamos sobre violência contra mulheres com deficiência?
De que forma ela é diferente da violência contra mulheres em geral?
De que forma ela é igual?
De que forma ela é diferente da violência contra pessoas com deficiência em geral?
Como podemos proteger os direitos das mulheres com deficiência para se livrarem da violência?
A International Network of Women with Disabilities (INWWD), conduziu uma série de debates sobre a violência contra mulheres com deficiência em 2009-2010 para encontrar respostas a algumas destas questões a partir das perspectivas e experiências das próprias mulheres com deficiência. O documento resultante serviu de base para este Relatório. A INWWD foi inaugurada em 2008 e é composta por organizações, grupos e redes de mulheres com deficiência, em âmbitos internacional, regional, nacional ou local, assim como, individualmente, por mulheres com deficiência e outras mulheres”.
O Relatório pode ser acessado através do link:
http://www.faders.rs.gov.br/uploads/1307988553Violencia_contra_Mulheres_com_Deficiencia.pdf
3. Alteração na Lei Maria da Penha amplia proteção de mulheres com deficiência – A juíza Adriana Ramos de Mello, em reportagem concedida ao programa Fantástico (Rede Globo, junho/2019), fala sobre a inovação trazida pela Lei nº 13.836, que determina constar no boletim de ocorrência se a vítima tinha ou ficou com alguma deficiência por causa da agressão. Assista ao programa na íntegra: https://globoplay.globo.com/v/7835516/
4. Assista ao documentário “Silenciadas: em busca de uma voz”
Direção: Flavia Pieretti Cardoso
Roteiro: Ana Paula Cardoso
Introdução do Documentário “Silenciadas: em busca de uma voz” (33 min). Um documentário que tem como propósito "dar voz" e visibilidade às mulheres com deficiência sobreviventes de violência de gênero, em uma sociedade onde são silenciadas e excluídas.
https://m.youtube.com/watch?v=xa9moW4WawY&feature=youtu.be
* Texto elaborado pelo Núcleo de Estudos de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero, da Escola da Ajuris, com a colaboração de Madgéli Frantz Machado, Juíza de Direito do 1º Juizado de Violência Doméstica de Porto Alegre e Coordenadora do Núcleo, e de Glaydcianne Pinheiro Bezerra, médica psiquiatra e perita.
Publicada no DOU em 08 de julho de 2020
*Madgéli Frantz Machado
Trata-se a Lei 14.022/2020 de recente produção legislativa que “ dispõe sobre medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e de enfrentamento à violência contra crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência durante a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”.
Dentre essas medidas, e relativamente ao enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, o art. 5º dispõe que:
Art. 5º As medidas protetivas deferidas em favor da mulher serão automaticamente prorrogadas e vigorarão durante a vigência da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, ou durante a declaração de estado de emergência de caráter humanitário e sanitário em território nacional, sem prejuízo do disposto no art. 19 e seguintes da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha).
Parágrafo único. O juiz competente providenciará a intimação do ofensor, que poderá ser realizada por meios eletrônicos, cientificando-o da prorrogação da medida protetiva.
Em que pese o espírito da lei, verifica-se que o referido dispositivo legal está eivado de inconstitucionalidade, por afrontar princípios e garantias constitucionais como a reserva de jurisdição, a inércia, o devido processo legal, a isonomia entre as partes, e a imprescindibilidade de fundamentação de todas as decisões judiciais.
Vejamos:
O dispositivo legal está em evidente desconformidade constitucional porque subtrai do(a) juiz(a) de direito, a quem cabe, com exclusividade, o exercício da jurisdição, a possibilidade de análise de cada caso concreto acerca da efetiva necessidade de prorrogação das medidas protetivas. De outra parte, coloca todas as mulheres que possuem essas medidas, de forma indiscriminada e presumida, na condição de vítimas com medidas protetivas. E, ainda, sem previsão de termo final para essa condição, já que condicionadas à situação de saúde pública que é indefinida. Essa disposição legal inclusive não atende aos interesses das próprias vítimas, já que, dentre elas, haverá aquelas que, concretamente, não desejam e não necessitam da manutenção das medidas protetivas (como nos casos,p.e. de reconciliação do casal).
É bom lembrar que medidas protetivas são medidas de urgência, aliás, como a própria Lei Maria da Penha as nomina: medidas protetivas de urgência. Logo, é imperativo que, para serem deferidas e, em consequência, prorrogadas, cabe ao(a) juiz(a) deter-se sobre o caso concreto e analisar se estão presentes os requisitos para a concessão da tutela de urgência, que são justamente a urgência e a necessidade. Isso porque, se de um lado temos a vítima, do outro, temos o suposto ofensor que, além de estar sendo processado, sofrerá restrição em seus direitos, especialmente o de ir e vir, com a aplicação de medidas dessa natureza, o que somente pode ser admitido por intermédio de decisão judicial fundamentada (arts. 5º, XII e 93, IX, da CF), garantidos, ainda, o devido processo legal e o exercício da ampla defesa ( art. 5º, LIV e LV, CF).
O processo não é só da vítima, pressupõe a existência de duas partes, que devem ser tratadas com equidade, cabendo ao(a) juiz(a) garantir-lhes a preservação e atendimento dos princípios e garantias processuais e constitucionais. Em consequência, o(a) juiz(a) não é juiz(a) da vítima, mas sim do processo.
A Lei Maria da Penha, de forma acertada, e ao contrário do dispositivo legal em comento, preserva a garantia constitucional da reserva da jurisdição, como se vê, por exemplo, no art. 18:
Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:
I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas deurgência
E quando trata das medidas protetivas (seja para concedê-las, seja para prorrogá-las), faz referência à imperiosidade de constatação, pelo(a) juiz(a), no caso concreto, de ameaça ou violação de direitos (que é pressuposto para a concessão/prorrogação de qualquer medida), cabendo-lhe o juízo quanto à necessidade das medidas (e de quais medidas) para a proteção da vítima e/ou de seus familiares, como se constata, ainda, exemplificativamente, nos arts. 19 a 24.
Importante registrar que, por se tratar de lei de proteção integral às mulheres em situação de violência doméstica, a Lei Maria da Penha inovou concedendo novos papeis ao Ministério Público e à Defensoria Pública, justamente para que, de forma mais intensa e efetiva, possam atuar na proteção dessas vítimas, especialmente quando elas próprias não puderem pedir proteção. No caso, mesmo em tempos de pandemia, tais instituições têm pleno acesso aos processos, neles podendo peticionar no interesse das vítimas.
E, a par dessa inovação, mantém íntegra uma outra garantia constitucional, qual seja, a da inércia da jurisdição que, por sua vez, também garante a imparcialidade do(a) juiz(a).
Nesse sentido, veja-se o que dispõe o art. 19 da Lei Maria da Penha:
Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimentodo Ministério Público ou a pedido da ofendida.(grifei)
§ 1º As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado.
§ 2º As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados.
§ 3º Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, concedernovas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas,se entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio, ouvido o Ministério Público.(grifei)
E também os arts. 27 e 28 que tratam da Assistência Judiciária à vítima, prestada através de advogado ou da Defensoria Pública :
Art. 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei.
Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acessoaos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei,em sede policial e judicial,mediante atendimento específico e humanizado. ( grifei)
Faço um registro, por fim, a uma outra ofensa constitucional (devido processo legal, isonomia das partes) prevista na Lei 14.022/20, no parágrafo único do art. 5º, ao determinar a intimação apenas do ofensor acerca da prorrogação automática das medidas protetivas de urgência, sem fazer qualquer menção à intimação da vítima, que também é parte no processo e destinatária da proteção.
Visando zelar pela proeminência da Constituição, assegurando a proteção e a efetivação dos direitos e garantias fundamentais tanto ao indivíduo como à sociedade, impõe-se, no caso, o controle de constitucionalidade, garantia constitucional fundamental prevista no art. 5º, XXXV, da CF/88.
Dessa forma, pelos argumentos expostos, tenho que é inconstitucional a determinação legal de prorrogação automática da medida protetiva, cabendo ao(a) juiz(a), no exercício do controle difuso da constitucionalidade, reconhecer a inconstitucionalidade, em concreto, do artigo 5º, da Lei nº 14.022/2020.
*Juíza de Direito titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Porto Alegre. Presidente do VIII Fonavid – Fórum Nacional de Juízas de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ( 2016)
A pandemia ocasionou mudança na vida da sociedade em todo globo em decorrência das medidas sanitárias necessárias para buscar conter o avanço do novo vírus. No Brasil, ainda, estamos vivenciando o isolamento social, sendo que muitas cidades possuem vigentes restrições de circulação em via pública bem como a indústria e comércio não essencial, estão proibidos de realizar suas atividades para evitar a circulação desnecessária de pessoas bem como aglomerações.
Essas medidas restritivas, não obstante a resistência inclusive de algumas autoridades brasileiras, vêm sendo necessárias para evitar o cenário catastrófico previsto pelos especialistas para o Brasil, caso não viesse a ser adotadas providências diante do avanço da pandemia em solo brasileiro.
Contudo, vivemos uma sociedade conectada por redes, sendo que uma ação hoje reflete no amanhã de forma positiva ou negativa. Assim, o fechamento das atividades econômicas acarreta de forma inevitável o aumento do desemprego, falência de empresas, pedidos de recuperação judicial, queda da arrecadação do governo, diminuição da renda salarial das famílias etc.
Nesse sentido, não precisa ser dotado de capacidade para prever o futuro ou ter sólidos conhecimentos em economia para saber que todos sofreremos, após superar a crise de saúde hoje existente, com a recessão econômica que se aproxima a curto e médio prazo.
Porém, não obstante a situação de exceção que estamos atravessando atualmente, bem como a crise econômica que se intensificará em breve, a sociedade brasileira precisa debater e preocupa-se com as mulheres que sofrem agressão no ambiente doméstico, exclusivamente pelo gênero, pois o número de vítimas certamente aumentará de forma significativa em decorrência da situação econômica que o país atravessará.
Quando iniciaram as discussões sobre as estratégias de enfrentamento da crise de saúde decorrente da pandemia, especialistas alertaram a sociedade e autoridades de que haveria reflexos negativos no número de vítimas de violência doméstica, especialmente em razão do isolamento social e fechamento físico dos serviços de atendimento e rede de proteção. O que era previsto, tornou-se uma triste realidade não apenas no Brasil, mas também em outros países do globo.
Nesse sentido, cabe mencionar, que durante o Covid-19, casos de feminicídio aumentaram 22,2% (Dado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública), sendo que em oito estados brasileiros houve aumento no número de vítimas. Ainda, a Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência, no número 180, registrou uma procura de 37,6% maior em abril deste ano, em relação ao ano passado.
Diante dessa realidade, cabe indagar: Por que a ONU - Organização das Nações Unidas, considerou uma pandemia a violência doméstica? Porque a violência extrapola os ambientes domésticos, a violência contra a mulher percorre órgãos públicos, escolas, empresas; está impregnada nos atos cotidianos de quem anda na rua, afetando a vida da população mundial com dados que já vinham crescendo antes do Covid-19.
E quando falamos em rua, muito bem nos lembra a arquiteta e escritora Joice Berth, autora da obra “O que é Empoderamento?”, que os espaços urbanos não são feitos para mulheres. E então nos reportamos a uma mulher andando pela rua e sentindo insegurança caminhando entre pessoas ou sozinha, afinal, somos objetificadas a todo tempo. A existência da mulher se resume a prestar serviços para a manutenção da família e ter seu corpo utilizado como meio de reprodução e saciedade masculina.
Além disso, cabe destacar, que a saúde pública ou privada recebe constantemente para atendimento mulheres vítimas de todos os tipos de violência, o que provoca a seguinte reflexão: nos espaços onde as mulheres deveriam se sentir amparadas, elas sofrem novas violências, sendo humilhadas, questionadas indevidamente, expostas, desacreditadas.
Agora, estamos com novos prognósticos de que a recessão econômica que se aproxima, decorrente da pandemia, aumentará os casos de violência de gênero.
Nesse sentido, deve ser observado, que o empoderamento feminino se concretiza de fato quando a mulher tem independência financeira e consegue prover seu sustento básico, podendo exercer seu direito de escolha, ter autonomia sobre as próprias ações e não ficando à mercê de outra pessoa.
Assim, quando acolhemos uma mulher em situação de violência, queremos sempre que ela saia de perto de quem a agrediu, queremos que ela passe a levar a vida sozinha, longe de quem comete violência contra sua pessoa, mas nos deparamos com a situação de desigualdade salarial. Pesquisas apontam que as mulheres recebem menos de 30% que os homens no mercado de trabalho.
Historicamente o mercado de trabalho não valoriza e desqualifica o trabalho das mulheres, ou seja, no campo profissional, simplesmente em razão do gênero, as mulheres nunca são boas o suficiente e sempre são colocadas a margem de inferioridade do homem, sendo que essa realidade tende a intensificar diante de uma recessão econômica.
Nesse sentido, cabe transcrever do Secretário – Geral da ONU Antonio Guterres no seguinte sentido: “A pandemia da COVID-19 tem um rosto feminino. São as mulheres que mais sofrem ameaça a direitos e liberdades, são elas as mais afetadas no ambiente de trabalho, já que são maioria das trabalhadoras em saúde. Elas são também a maioria das trabalhadoras domésticas, temporárias e em serviços de pequena escala que devem desaparecer nos próximos três meses, de acordo com projeções da Organização Internacional do Trabalho (OIT). É por este motivo que precisamos de sociedades mais igualitárias”.
E como se não bastassem as intercorrências decorrentes da situação econômica agravada, temos, ainda, a saúde mental da mulher, que, com certeza, também será afetada, uma vez que o isolamento e as dificuldades financeiras terão modificado as relações, independente de flexibilidade humana.
No tocante a saúde mental, cabe transcrever trecho da publicação disponibilizada no jornal El Pais, em 31 de março de 2017 intitulada “Como reconhecer os maus-tratos psicológicos no casal”, da autora Olga Carmona, que especifica os abusos psicológicos para os identificarmos: “cuja tendência a ocultar coisas por medo da reação depreciativa ou desproporcionada do outro: temor de contradizê-lo, deixar que o outro tome decisões no seu lugar, aceitar fazer sexo sem ter vontade, evitar opinar em público diante do outro, observar que a outra pessoa minimiza seus feitos e lhe culpa pelos erros, que ocupa o papel de uma mãe ou pai que sabe o que é bom para a mulher, organiza o tempo livre da mulher sem lhe consultar, olha seu celular, provoca tensão ou medo de errar, julga o que você faz, diz ou veste, responsabiliza a mulher pelo estado de ânimo alheio, faz a mulher se afastar pouco a pouco das relações que são só da mulher (amizades e familiares), até que, definitivamente, a mulher vai deixando de ser ela mesma para se tornar uma espécie fantasma que tenta se encaixar num suposto modelo feito sob medida para os desejos de outra pessoa. É terrorismo íntimo”.
A violência psicológica é mais comum e aceita entre os casais, que durante a pandemia de Covid-19 intensificaram sua convivência, por consequência, um aumento na frequência dessa silenciosa e difícil violência. Porém, tende a intensificar com a crise econômica pós - pandemia, pois a perda do emprego ou mesmo diminuição da renda acaba afetando diretamente as relações familiares sendo assim o estopim para o aumento da violência doméstica.
O Covid-19 fez com que a pandemia da violência doméstica que crescia silenciosa viesse à superfície. E nos pegamos pensando em formas de enfrentá-la hoje, agora, pois a necessidade de urgência nos grita de forma assustadora.
Muitas providências são para agora, é pra já. A violência contra a mulher é um vírus que se alastra desde 10.000 a.C., sob a forma de brincadeira naturalizada, regras sociais inatingíveis e atinge avassaladoramente um grupo de mulheres que está muito mais vulnerável: a negra e a periférica. Diante do conhecimento das inúmeras formas de violência contra a mulher, quem trabalha para enfrentar essa pandemia, acaba tendo por anos, que repetir o óbvio. Pois ainda temos enraizado culturas, modo de pensar e o hábito de julgamento que propulsiona tudo isso.
Assim, ciente de uma grave situação que se aproxima, no tocante ao aumento significativo da violência de gênero, cabe a sociedade buscar auxiliar essas vítimas bem como denunciar os agressores para combater esse mal e conscientizar que a violência doméstica é um problema real. Não adianta comemorar o combate ao vírus, a superação da recessão econômica, se as estatísticas no tocante a violência doméstica continuarem numa ascendente, conforme estamos verificando nesses últimos meses especialmente no Brasil.
Por fim, cabe registrar, que a crise econômica que se aproxima em razão da pandemia é uma realidade e com ela o aumento da violência de gênero. Contudo, cientes que essas projeções se concretizem, bem como das causas, cabe buscar estratégias para combatê-las e assim salvar a dignidade e vidas de muitas mulheres.
· Texto elaborado por Thiago Tristão de Lima, Juiz de Direito do TJRS.
Em estudo publicado pela Revista Época, no fim de 2019, embasado nos dados do SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) mostrou que entre o período de 2009 a 2016, os casos notificados de violência doméstica cometidos pelo cônjuge ou namorado da vítima tiveram um aumento de 400%.
Embora os números assustem, indicam também que cada vez mais casos de violência contra a mulher tem saído dos domicílios e chegado ao conhecimento da rede de proteção das vítimas. Todavia, mesmo com muitos avanços desde a criação em 2006 da Lei nº 11.340 (Lei Maria da Penha), o país ainda tem pela frente uma longa jornada para a erradicação dos crimes de violência doméstica. Parte desta jornada ainda se encontra praticamente intocada, enraizada nas estruturas da sociedade, compondo o cenário do quadro da sagrada família brasileira.
A VIOLÊNCIA SEXUAL NO CASAMENTO: UM INIMIGO QUASE INVÍSIVEL
Dos quase cinquenta mil casos de estupro registrados pela polícia (mais de quatro mil no estado do Rio Grande do Sul) no ano de 2016[1], 13,5% destes foram cometidos dentro do casamento, pelos cônjuges da vítima. Ou seja, cerca de 2.700 mulheres no ano de 2016 foram estupradas pelos seus maridos. Ainda sobre estes números, de 2009 a 2016 houve um aumento de 1200%[2] nas denúncias de estupro praticados por cônjuge e namorados.
Embora cada vez mais os órgãos do estado, universidades etc. venham se dedicando a obtenção e análise dos dados sobre a violência sexual dentro do casamento, o nicho de informações sobre o fenômeno, bem como os dados de sua ocorrência ainda são escassos, e mais alarmante, subnotificados. Na prática isso significa afirmar que o que de fato se sabe sobre a incidência da violência sexual conjugal no Brasil, sendo otimista, não passa da ponta do Iceberg. Conforme indica o Atlas da Violência 2018:
Imagem retirada do dossiê Violência contra as mulheres Instituto Patrícia Galvão
“ A única pesquisa de vitimização abrangente mais detalhada e voltada exclusivamente para as questões de violência de gênero foi a conduzida pela Universidade Federal do Ceará, em parceria com a Universidade de Toulouse e o Instituto Maria da Penha (Carvalho e Oliveira, 2016). A primeira onda da Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (PCSVDFMulher) foi feita em 2016, em todas as capitais nordestinas, e entrevistou 11.141 mulheres, entre 15 e 49 anos. Segundo as estimativas de Carvalho e Oliveira (2016), 2,42% das mulheres foram vítimas de violência sexual nos últimos 12 meses. Supondo-se que a prevalência de violências sexuais no Brasil fosse igual à das capitais nordestinas, isso implicaria dizer que a cada ano cerca de 1.350 milhão de mulheres seriam acometidas por violência sexual no país.”
A inconsistência entre os casos reportados e o que se estima ser a prevalência dos casos de violência sexual dentro do relacionamento aponta para uma tolerância cultural deste tipo de violência e por isso mais e mais pesquisadores vêm se dedicando a entender o fenômeno.
O QUE É ESTUPRO MARITAL? UM PROBLEMA HISTÓRICO GLOBAL ENRAIZADO NA REALIDADE BRASILEIRA
Como se sabe, a violência doméstica não ocorre como uma questão isolada em nossa sociedade. Sim como consequência de uma realidade de desigualdade de gênero que visa a opressão das mulheres. Nesse sentido a violência doméstica de forma geral se torna uma prática de perpetuação de poder sobre o gênero feminino.
A violência sexual se dá dentro desta mesma lógica de dominação e objetificação[3] das mulheres em que sua subjetividade. Suas qualidades humanas não são vistas como importantes o suficiente para que seus corpos sejam respeitados, ou ainda, através da violação de seus corpos que se busca reduzir a condição da mulher enquanto sujeito. Isso acontece por exemplo em casos que estupros são cometidos em mulheres homossexuais como forma de “corrigir” a orientação sexual da mesma, o dito estupro corretivo.
O Código Penal considera crime de estupro: “Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”[4]
Então, de forma simplória nos parece fácil entender o conceito de estupro: ou seja, a imposição da prática sexual mediante coerção por violência física, verbal ou psicológica. Mas na prática ainda rondam o imaginário popular muitas falácias quanto a classificação do ato. Fatores como: a vestimenta da vítima – “Mas também com aquela roupa... estava pedindo”, o local que o crime ocorreu – “Estava fazendo o que àquela hora na rua...”, “Mulher decente não frequenta este tipo de lugar” – etc. são levados em conta pelo julgamento social, acadêmico e operadores do direito. O que nos permite entender um pouco mais sobre o porquê da subnotificação dos dados.
Não apenas os estupros que ocorrem fora de casa, infringidos por desconhecidos, são alvos da desaprovação social. A violência sexual no âmbito familiar, cometida por alguém que a vítima tinha laços afetivos foi por muitos e muitos anos colocada no limbo da inexistência.
A lei dos Crimes Contra a Dignidade Sexual, 12. 015/2009, que complementa o Art. 213 do Código Penal, reconhece a prática do estupro por membros do círculo da vítima, incluindo cônjuges, e considera um agravante o vínculo do estuprador com esta. Apesar de ter sido criada apenas em 2009, até 2005 o estupro era ainda considerado crime contra a honra (Honra esta do homem e da família) , pois estava vigente a constituição de 1940 onde era possível a desclassificação do crime de estupro, caso o estuprador fosse casado com a vítima.
Isso se dá porque culturalmente, ao longo da história do país, a objetificação da mulher se realizava dentro do casamento, através das obrigações servis. Em outras palavras era dever da esposa servir e satisfazer as necessidades do marido e da família, desde as necessidades relativas à casa até as necessidades sexuais.
A assessora técnica da ONU Mulheres no Brasil, Socióloga, professora da USP, Wânia Pasinato, fala sobre as construções culturais de gênero dentro do casamento:
“Existe uma questão cultural das mulheres entenderem que, estando num relacionamento afetivo, elas têm essa dívida: devem manter relação sexual mesmo contra a vontade, porque se não fizerem isso vão estar falhando como companheiras [...] Elas assumem essa responsabilidade de que precisam ceder sempre ao desejo do companheiro porque essa é a forma de manter uma relação.”
Imagem retirada da internet
Ainda sobre a interface cultural, em entrevista ao blog Cientista que virou mãe a psicóloga, ex-coordenadora do Centro de Referência para mulher vítima de violência em São Paulo, Branca Paperitti, refere que a violência sexual dentro do casamento se dá de forma complexa:
porque nem sempre envolve violência física, muitas vezes é psicológica, chantagens, ameaça de abandono [...] “É importante entender se você é sujeito de direito na relação, se está sendo respeitada em seus momentos, em sua sexualidade. Tudo que não for consentido, tudo que não for combinado, é violência. Se não há respeito e autonomia é violência. É importante refletir sobre isso e se for difícil lidar com isso sozinha, conversar com alguém”.
Apesar das conquistas significativas, ao longo da história, e através das lutas feministas, ainda é preciso uma longa jornada para que tenhamos uma sociedade que eduque mulheres sobre seus direitos e homens sobre seus limites.
IMPORTANTE!
VEJA ABAIXO OS PRINCIPAIS SERVIÇOS PARA PEDIR AJUDA E PARA DENUNCIAR:
1. SE A VIOLÊNCIA ESTIVER ACONTECENDO:
A vítima ou qualquer outra pessoa deverá telefonar para a BRIGADA MILITAR 190
2. SE A VIOLÊNCIA JÁ ACONTECEU:
A vítima deverá registrar ocorrência policial e pedir medidas protetivas. Como fazer?
Ocorrência policial (on-line) : ssp.rs.gov.br/denuncia-digital
Delegacia da Mulher de Porto Alegre (DEAM), para registros presencialmente: Atendimento 24 horas - (51) 3288-2172 - Rua Prof. Freitas e Castro, 701-739 – Bairro Azenha
Denúncias à Polícia Civil, pela vítima ou terceiro (para todo o RS): Fone 197
WhatsApp - Também pode ser usado para encaminhar fotos, vídeos e áudios (51) 98444-0606
Disque-Denúncia 181
Também podem ser acessados os seguintes serviços, tanto pela vítima como por terceiros:
Central de Atendimento À Mulher 180 (24h por dia)
https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/politicas-para-mulheres/ligue-180
Ministério Público (51) 3295-9782 ou 3295-9700
Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.
Defensoria Pública (51) 997992943 ( WhatsApp), de segunda à quinta-feira, das 14h às 18h.
Centro de Referência de Atendimento à Mulher Vítima de Violência Doméstica (CRAM) de Porto Alegre
(51) 32895110/ 32895101/ 3289 5117, de segunda à sexta-feira, das 8h30min ás 12h e das 13h30min às 18h
Themis – busque a Themis nas redes sociais. Uma promotora legal popular (PLP) pode ajudar você! (51) 32120104, de segunda à sexta-feira, das 13h às 18h
Patrulha Maria da Penha – realiza visitas na casa das vítimas de violência doméstica para monitoramento das medidas protetivas deferidas, a partir do encaminhamento feito pelo(a) juiz(a) de direito.
Além da denúncia, é muito importante que a vítima solicite medidas protetivas, pois elas salvam vidas!
*Texto elaborado pelo Núcleo de Estudos de Violência Doméstica, Familiar e de Gênero, da Escola da Ajuris, com a colaboração de Letícia Cardoso da Silva, acadêmica de Psicologia e estagiária do Projeto Borboleta, no âmbito dos Juizados de VD de Porto Alegre
LINKS UTILIZADOS
REPOSTAGEM ESTADÃO SOBRE OS NUMEROS DA VIOLENCIA CONTRA MULHER: https://epoca.globo.com/a-violencia-contra-mulher-no-brasil-em-cinco-graficos-23506457#:~:text=O%20n%C3%BAmero%20de%20notifica%C3%A7%C3%B5es%20de%20estupros%20por%20c%C3%B4njuges%20ou%20namorados,humanos%20pela%20ONU%20em%201993.
SIGNIFICADO DE OBJETIFICAÇÃO: https://www.dicio.com.br/objetificacao/
ENTREVISTA NO BLOG CIENTISTA QUE VIROU MÃE: https://www.cientistaqueviroumae.com.br/blog/textos/violencia-sexual-no-casamento-precisamos-falar-sobre-isso#:~:text=Branca%20reitera%20que%20a%20viol%C3%AAncia,seus%20momentos%2C%20em%20sua%20sexualidade.
JUSBRASIL, ART. 213 COMENTADO: https://leonardocastro2.jusbrasil.com.br/artigos/121943503/legislacao-comentada-artigo-213-do-cp-estupro
[1] Informação retirada do Atlas da Violência 2018
[2] Dados obtidos pelo SINAN e divulgados pelo Estadão
[3] Processo que atribui ao ser humano a natureza de um objeto material, tratando-o como um objeto ou coisa – Dicionário Online de português
[4] Constituição Federal
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