Publicada no DOU em 08 de julho de 2020
*Madgéli Frantz Machado
Trata-se a Lei 14.022/2020 de recente produção legislativa que “ dispõe sobre medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher e de enfrentamento à violência contra crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência durante a emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019”.
Dentre essas medidas, e relativamente ao enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, o art. 5º dispõe que:
Art. 5º As medidas protetivas deferidas em favor da mulher serão automaticamente prorrogadas e vigorarão durante a vigência da Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020, ou durante a declaração de estado de emergência de caráter humanitário e sanitário em território nacional, sem prejuízo do disposto no art. 19 e seguintes da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha).
Parágrafo único. O juiz competente providenciará a intimação do ofensor, que poderá ser realizada por meios eletrônicos, cientificando-o da prorrogação da medida protetiva.
Em que pese o espírito da lei, verifica-se que o referido dispositivo legal está eivado de inconstitucionalidade, por afrontar princípios e garantias constitucionais como a reserva de jurisdição, a inércia, o devido processo legal, a isonomia entre as partes, e a imprescindibilidade de fundamentação de todas as decisões judiciais.
Vejamos:
O dispositivo legal está em evidente desconformidade constitucional porque subtrai do(a) juiz(a) de direito, a quem cabe, com exclusividade, o exercício da jurisdição, a possibilidade de análise de cada caso concreto acerca da efetiva necessidade de prorrogação das medidas protetivas. De outra parte, coloca todas as mulheres que possuem essas medidas, de forma indiscriminada e presumida, na condição de vítimas com medidas protetivas. E, ainda, sem previsão de termo final para essa condição, já que condicionadas à situação de saúde pública que é indefinida. Essa disposição legal inclusive não atende aos interesses das próprias vítimas, já que, dentre elas, haverá aquelas que, concretamente, não desejam e não necessitam da manutenção das medidas protetivas (como nos casos,p.e. de reconciliação do casal).
É bom lembrar que medidas protetivas são medidas de urgência, aliás, como a própria Lei Maria da Penha as nomina: medidas protetivas de urgência. Logo, é imperativo que, para serem deferidas e, em consequência, prorrogadas, cabe ao(a) juiz(a) deter-se sobre o caso concreto e analisar se estão presentes os requisitos para a concessão da tutela de urgência, que são justamente a urgência e a necessidade. Isso porque, se de um lado temos a vítima, do outro, temos o suposto ofensor que, além de estar sendo processado, sofrerá restrição em seus direitos, especialmente o de ir e vir, com a aplicação de medidas dessa natureza, o que somente pode ser admitido por intermédio de decisão judicial fundamentada (arts. 5º, XII e 93, IX, da CF), garantidos, ainda, o devido processo legal e o exercício da ampla defesa ( art. 5º, LIV e LV, CF).
O processo não é só da vítima, pressupõe a existência de duas partes, que devem ser tratadas com equidade, cabendo ao(a) juiz(a) garantir-lhes a preservação e atendimento dos princípios e garantias processuais e constitucionais. Em consequência, o(a) juiz(a) não é juiz(a) da vítima, mas sim do processo.
A Lei Maria da Penha, de forma acertada, e ao contrário do dispositivo legal em comento, preserva a garantia constitucional da reserva da jurisdição, como se vê, por exemplo, no art. 18:
Art. 18. Recebido o expediente com o pedido da ofendida, caberá ao juiz, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas:
I - conhecer do expediente e do pedido e decidir sobre as medidas protetivas deurgência
E quando trata das medidas protetivas (seja para concedê-las, seja para prorrogá-las), faz referência à imperiosidade de constatação, pelo(a) juiz(a), no caso concreto, de ameaça ou violação de direitos (que é pressuposto para a concessão/prorrogação de qualquer medida), cabendo-lhe o juízo quanto à necessidade das medidas (e de quais medidas) para a proteção da vítima e/ou de seus familiares, como se constata, ainda, exemplificativamente, nos arts. 19 a 24.
Importante registrar que, por se tratar de lei de proteção integral às mulheres em situação de violência doméstica, a Lei Maria da Penha inovou concedendo novos papeis ao Ministério Público e à Defensoria Pública, justamente para que, de forma mais intensa e efetiva, possam atuar na proteção dessas vítimas, especialmente quando elas próprias não puderem pedir proteção. No caso, mesmo em tempos de pandemia, tais instituições têm pleno acesso aos processos, neles podendo peticionar no interesse das vítimas.
E, a par dessa inovação, mantém íntegra uma outra garantia constitucional, qual seja, a da inércia da jurisdição que, por sua vez, também garante a imparcialidade do(a) juiz(a).
Nesse sentido, veja-se o que dispõe o art. 19 da Lei Maria da Penha:
Art. 19. As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas pelo juiz, a requerimentodo Ministério Público ou a pedido da ofendida.(grifei)
§ 1º As medidas protetivas de urgência poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes e de manifestação do Ministério Público, devendo este ser prontamente comunicado.
§ 2º As medidas protetivas de urgência serão aplicadas isolada ou cumulativamente, e poderão ser substituídas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados.
§ 3º Poderá o juiz, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida, concedernovas medidas protetivas de urgência ou rever aquelas já concedidas,se entender necessário à proteção da ofendida, de seus familiares e de seu patrimônio, ouvido o Ministério Público.(grifei)
E também os arts. 27 e 28 que tratam da Assistência Judiciária à vítima, prestada através de advogado ou da Defensoria Pública :
Art. 27. Em todos os atos processuais, cíveis e criminais, a mulher em situação de violência doméstica e familiar deverá estar acompanhada de advogado, ressalvado o previsto no art. 19 desta Lei.
Art. 28. É garantido a toda mulher em situação de violência doméstica e familiar o acessoaos serviços de Defensoria Pública ou de Assistência Judiciária Gratuita, nos termos da lei,em sede policial e judicial,mediante atendimento específico e humanizado. ( grifei)
Faço um registro, por fim, a uma outra ofensa constitucional (devido processo legal, isonomia das partes) prevista na Lei 14.022/20, no parágrafo único do art. 5º, ao determinar a intimação apenas do ofensor acerca da prorrogação automática das medidas protetivas de urgência, sem fazer qualquer menção à intimação da vítima, que também é parte no processo e destinatária da proteção.
Visando zelar pela proeminência da Constituição, assegurando a proteção e a efetivação dos direitos e garantias fundamentais tanto ao indivíduo como à sociedade, impõe-se, no caso, o controle de constitucionalidade, garantia constitucional fundamental prevista no art. 5º, XXXV, da CF/88.
Dessa forma, pelos argumentos expostos, tenho que é inconstitucional a determinação legal de prorrogação automática da medida protetiva, cabendo ao(a) juiz(a), no exercício do controle difuso da constitucionalidade, reconhecer a inconstitucionalidade, em concreto, do artigo 5º, da Lei nº 14.022/2020.
*Juíza de Direito titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Porto Alegre. Presidente do VIII Fonavid – Fórum Nacional de Juízas de Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ( 2016)